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Desajuste Economia Real e Economia Financeira

Atualizado: 18 de nov. de 2020

Crescimento da Economia Mundial VS Nasdaq100 (sem dividendos reinvestidos), base 2005 e em juro composto

Fonte: FMI, Investing.com, cálculos do autor

Imaginemos que eu tenho uma bola de cristal e que no último dia de 2019 vos tinha dito que em 2020 a economia europeia e americana iriam contrair 7.1% e 5.9%, respetivamente, e que a bolsa tecnológica europeia e americana iriam subir 8% e 30%, respetivamente. Certamente diriam que não era possível as bolsas valorizarem tanto tendo em conta a severidade da contração económica em questão, e que as bolsas devem acompanhar o que acontece na economia real… Apesar do vosso argumento ser lógico e fundamentado, é a exatamente isto o que temos assistido em 2020. Mas porquê?

Como consultor financeiro esta é uma questão que me tem sido colocada algumas vezes e, como tal, pensei em partilhar convosco a minha opinião sobre o tema, juntamente com alguns números.

Ora bem, o impacto económico que a pandemia Covid-19 provocou, e continuará a provocar, não é novidade para nenhum dos leitores. O número de desempregados inscritos no IEFP já ultrapassa os 407 mil em Portugal, um aumento de 37% face ao ano passado e o Algarve tem sido de longe a região mais afetada do país, com a taxa de desemprego a subir 216% face a 2019, o que representa cerca de 23 mil desempregados na região. Olhando para o Produto Interno Bruto Português, uma medida de toda a riqueza gerada pelo país, este sofreu uma queda histórica de 16.5% no segundo trimestre de 2020. Ou seja, não importa onde procuremos, os números não revelam nenhum otimismo.

Consequentemente, as bolsas só podem estar em máximos históricos, certo (ironia)? Pois é, apesar da razia económico que a pandemia trouxe, as bolsas, sobretudo a bolsa americana onde as maiores empresas tecnológicas estão cotadas – o Nasdaq100 – está cerca de 30% acima do valor com que abriu no início do ano, e a Apple reforçou a sua posição como a empresa mais valiosa do mundo, tendo estado valorizada em mais de 2.1 triliões de dólares em Setembro. Ao mesmo tempo, o FMI prevê uma contração do PIB global na ordem dos 4.9%. Tendo em conta que o PIB global em 2019 rondou os 88 triliões de dólares, isto representa uma destruição de riqueza na ordem dos 4.3triliões de dólares, um valor 18x maior que o PIB português em 2019.

Mais pertinente do que assustar-vos com estes números gigantes, é tentarmos perceber o que está por detrás dos mesmos:

1) A economia real a as bolsas NÃO são a mesma coisa e apesar de estarem interligados tem muitas vezes comportamentos opostos.

2) Há que perceber que as bolsas movem-se com base nas expetativas dos investidores quanto ao futuro. Quando investimos em bolsa estamos a comprar o futuro ao preço de hoje. Por outro lado, os indicadores económicos como o PIB e taxa de desemprego são dados históricos e quantificam aquilo que já aconteceu. Analisar estes indicadores é como olhar para o retrovisor quando se está a conduzir. Este comportamento foi bem visível em Março. 22 de Março marcou o início da recuperação das bolsas mundiais, que tinham acabado de bater o recorde de queda mensal mais acentuada (queda de 35% apenas num mês). À data, estavam registados 292mil casos de infetados com Covid-19 no mundo, hoje são mais de 34 milhões. Estar ciente destas diferenças é muito importante pois a queda das bolsas em fevereiro/março deveu-se em grande parte às expetativas negativas do futuro, que se estão agora a materializar.

3) Em bolsa, os resultados dos indicadores económicos apenas são bons ou maus conforme as expetativas. Quando os investidores descontam expetativas ultrapessimistas mas os números vêm menos pessimistas que o esperado, isto são ‘boas notícias’ para os investidores.

4) Os bancos centrais têm feito um excelente trabalho em suportar os mercados financeiros, consideravelmente melhor do que os governos a amparar as economias locais. Como resposta a esta crise assistimos a uma redução global das taxas de juro. Isto é bom para as empresas cotadas em bolsa pois torna o acesso ao crédito mais barato e o crédito é o sangue da economia. A dimensão do pacote de estímulos anunciados pelo Banco Central Europeu foi de 7% do PIB total da zona euro, o mesmo número foi de 20% nos Estados Unidos e 9% no Reino Unido. Este dinheiro tende a encontrar o seu caminho para os mercados financeiros muito mais depressa do que para a economia real e isto exacerba a disparidade entre mercados financeiros e economia real, tal como a disparidade entre os detentores e não-detentores de ativos financeiros (wealth gap).

5) Desde Abril que as notícias e os desenvolvimentos em torno do Covid-19 têm sido mais positivas. Fala-se em vacinas prontas a distribuir e em fases finais de teste, as quarentenas obrigatórias e outras restrições foram levantadas e as pessoas voltaram a trabalhar e consumir (apesar de ainda a níveis bastante inferiores ao pré-Covid-19). Este conjunto de desenvolvimentos contribuiu para uma maior confiança dos investidores, que se posicionaram como se o pior já tivesse passado.

6) Por último, temos assistido a um aumento da especulação por parte dos grandes investidores e também da participação dos pequenos investidores, por norma menos qualificados e informados. Ambos têm-se revelado bastante dispostos a investir nas principais empresas tecnológicas como Apple, Amazon, Netflix, Zoom e Tesla. O racional prevalecente é que este setor beneficia de um mundo mais digital e que as suas vendas têm crescido durante a pandemia. É interessante notar que se excluirmos as empresas tecnológicas, as bolsas nunca chegaram realmente a recuperar dos valores pré-Covid-19.

Preço das 10 maiores empresas VS últimas 490 no S&P500 (Jan-Set 2020)

Fonte: TrendPlaybook.com, Bloomberg Data


João Feliciano Martins

ASCI, IAD, APP

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